segunda-feira, 21 de março de 2016

Jogar ao gato e ao rato com a chuva

Março 2016
(Serra da Lousã)

Tempo instável.
Ora vinha uma carga de água caída de nuvens negras, ora abria uma claridade enganadora que parecia anunciar Sol aberto mas que, logo a seguir, era tapada por nuvens ainda mais negras e ameaçadoras que as primeiras. E isto repetido ao longo da manhã.
Nestas situações, lembro-me sempre das palavras do Sr. Santana que do alto da sua provecta idade, três vezes meneando a cabeça (!!!), me disse no tom sábio de quem revela um dos segredos do Universo: não é por estar  chover que vamos deixar de andar de bicicleta.

O plano é (1) sentir-me confortável a pedalar à chuva e (2) ir fugindo às nuvens negras. O ponto 1 requer lucidez e descontracção (ora, é apenas chuva), o ponto 2 implica pensamento estratégico. Se vêm de Nordeste, aponto a proa da bike à nuvem até começar a levar com as primeiras gotas (uma estratégia inspirada na que os  marinheiros Portugueses Portugueses usavam quando navegavam à bolina, contra o vento) e então, nessa altura, guino o guiador da bike e rumo a Sul, subindo a encosta da serra porque sei que a chuva se vai meter pelo vale dentro cá em baixo, passando-me a estibordo. Depois só apanho com as de Sul que se aninharam ali em cima, sob a serra.


Saí em direcção Nordeste directamente ao encontro de uma nuvem escura. Logo depois, a chuva caía em gotas grossas e parecia que me ia meter na boca do lobo mas, então, comecei a subir para Sul, fugindo do vale. Quando cheguei à aldeia de Vale Nogueira a meia encosta, a chuva, como previra, fustigava o vale e a Lousã mas apenas me salpicava aqui, em Vale Nogueira. Estive aqui algum tempo observando a chuva a cair em lençol, como se nota claramente na fotografia ao fundo, à direita.


Sempre tive esta coisa entranhada em mim. Sei sempre de que lado sopra o vento, para onde é o Norte, como está o céu à noite, que constelações se vêem, qual a fase da Lua ... Houve até uma altura, quando era adolescente, que me treinava a saber as horas pela observação do percurso do Sol. Raramente falhava por mais que 20 min.
Ainda se tivesse uma actividade ao ar livre ou ligada ao campo! Mas minha vida é passada dentro de edifícios em meio urbano. Quando viajo e aterro numa cidade desconhecida, instintivamente, oriento-me. Das coisas mais perturbadoras que me acontece é aterrar de noite, ir para um hotel e ficar às aranhas sem saber de que lado nasce o Sol. No hemisfério Norte, curiosamente, oriento-me mais facilmente do que no Sul.
Já aprendi a não comentar estes assuntos no meu dia-a-dia. Estamos numa pausa para café e tal, conversa para aqui e para ali mas o vento hoje virou para Sul, ontem estava de Nordeste e que é capaz de vir chuva, aliás, a Lua ontem à noite tinha auréola e estava belíssima, não estava? não é conversa que entusiasme. Surpreende-me que a maioria das pessoas que conheço não olha para o céu, nem de dia, nem de noite. E olhar o céu estrelado num local limpo e escuro, a via láctea, as estrelas, planetas do sistema solar, supernovas e outros objectos é maravilhoso. É uma imensidão e, ao mesmo tempo, uma sensação de proximidade. É também uma visão do passado. É que a velocidade da luz é finita (300 mil Km/s) e as estrelas estão muito longe e, portanto, a luz que vemos quando olhamos o céu foi emitida pelas estrelas há muitos anos atrás. Demorou tempo a chegar em função da distância a que as estrelas estão da Terra. A Proxima Centauri é a mais próxima e a luz emitida demora cerca de 5 anos a atingir a Terra (fica a 5 anos-luz). Portanto, vêmo-la como era há 5 anos atrás, não como é hoje (se ainda é!). Outras estão a milhares, milhões de anos-luz. Como as estrelas nascem e morrem, muitas das que hoje vemos podem já não ser estrelas. Estamos a olhar para o passado quando olhamos o céu. À medida que vamos percorrendo várias regiões do céu com o olhar, como as estrelas diferem na distância à Terra, estamos a viajar no tempo.

Bem, mas para cima, para a serra, parece mais claro, o céu. Tanto quanto percebo pelo que vejo por entre as árvores.



A coisa aguentou-se. Não houve grandes chuvadas, apenas uns salpicos. Aliás, os salpicos vinham sobretudo das rodas; é que os caminhos estavam transformados em lamaçais. Para mais, tinha andado por ali um tractor a cortar árvores, deixando regos e revoltando a terra. Passei por uns eucaliptos cortados e o cheiro era não o aromático intenso (de folhas de eucalipto frescas) mas um aroma maduro, envelhecido, delicioso. Sentia-o na boca como se estivesse a provar um vinho.



Na chegada ao planalto do Espinheiro o céu enganava. Parecia abrir mas pois é, já sei como é, aqui no planalto o tempo engana.


De repente tudo muda.



Enquanto andava por ali começou a caía uma chuva miudinha tranquila. O jogo do gato e do rato entre mim e a chuva continuava; e a chuva era o gato!


Estava numa ratoeira, dali, do planalto do Espinheiro, não conseguia mover-me suficientemente rápido para escapar às nuvens negras.
Decidi que iria pela floresta, mais acima.




Meti-me pelo caminho que passa na fonte fria. É uma transição espectacular, do planalto nu de erva alta do Espinheiro para a floresta. A aproximar-me parei. Olhei o caminho que se metia por entre as árvores, o ambiente tranquilo com luz suave era cortado por uns "pios" de pássaros que, claramente, comunicavam entre si.  Puxei do telemóvel, carreguei em vídeo e fui apontando à volta na expectativa de os apanhar. Em vão, percebe-se a certa altura pelo efeito Doppler do pio que foram à vida deles para longe dali (o do pio mais agudo poderia ser um melro, o outro, com som mais grave, não sei).

Fica a memória para se ouvER.



Depois? Depois segui para a fonte fria. O ambiente era despojado, elementar, sem vaidades de cores a sobressair na floresta. Pedalo por ali sob chuva miudinha por lama e poças de água com o prazer de quem apanha uma brisa suave à beira-mar num dia quente ao por-do-Sol.


A certa altura, o caminho macio de lamas, folhas e paus molhados (manteiga para as rodas da bike, if you know what I mean) torna-se pedregoso, imprevisto e com mais ângulos. Sinais de que estou a chegar. Lembro-me da última vez que havia umas pedras com musgo na curva da fonte.


Cheguei à fonte fria, local mítico (digo eu) por onde tinha passado há tempos atrás.




Ao espreitar no tanque, desta vez encontrei o duende da fonte. Ao princípio surgiu como uma imagem desfocada, só para fazer suspense



Mas depois vi claramente visto, era o duende e apoiava-se num pau, como que a convidar-me a agarrar a outra extremidade e, assim, puxar-me para dentro do tanque. Não fui na conversa.


Olhei com atenção, era apenas um. Mais à frente no tanque estava tudo tranquilo, apenas a floresta no espelho de água ladeado por um muro coberto de cores e texturas belas.


Do lado de cima, o riacho que alimenta a fonte. É difícil abandonar este local.


Mas lá disse adeus ao duende


Saí dali à pressa, de outro modo passaria mais 10, 15, 20 min por ali, a diluir-me na floresta (como me disseram num comentário há tempos). Mas, logo a seguir, parei e encostei a bike. Deixa cá ver; óculos, luvas, balaclava, telemóvel, capacete .... está tudo. Eu, que sou perito em esquecer-me de coisas, tenho que fazer checks frequentes - quantas vezes não voltei para trás à procura dos óculos em cima de uma pedra (agora quando os tiro pouso-os no selim, pelo menos dou por eles quando me sento ao montar na bike), do capacete pendurado num ramo ...


Lá para baixo, para o vale, o dia tinha aberto. Ia ser uma descida a seco. A seco é mais confortável. Apesar de o meu casaco ter uma espécie de fralda que, desapertando umas molas, cai na parte de trás ao fundo das costas, protegendo-me os grandes glúteos e o espaço entre eles (por assim dizer) dos salpicos de água da roda traseira, há sempre infiltrações (!?) indesejadas.


Pelo menos dos joelhos para cima (o que já não é mau) seria a seco. É que havia umas poças de água que, caso fosse distraído a olhar à volta, poderiam refrescar-me os pés.





6 comentários:

  1. Olá João,

    Não se diluíu na floresta mas quase se metamorfoseou no duende da fonte fria. Por sorte hoje nenhum lobo foi descansar junto à bicicleta...

    Tentei descortinar o efeito Doppler no canto do pássaro mas não tenho o ouvido afinado pelos diapasões da floresta, não consegui perceber que ele, sim, se tinha diluído entre as brumas.

    Muito bonitas as suas reportagens. E linda a serra, linda.

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  2. Olá Um Jeito Manso,
    Pois, quase que fico na dúvida se o duende, afinal, não sou eu.
    É difícil apanhar as subtilezas do som ambiente com o telemóvel. De facto, no vídeo não se percebe o distanciar do pio do pássaro. E este telemóvel que hoje tenho nem é mau.
    A maior frustração foi no último Outubro/Novembro, altura da brama dos veados, em que estava num vale aberto onde ecoava o chamamento dos veados à distância. Ora um, ora outro bramavam e o eco percorria as encostas. Era uma coisa do outro mundo. Enfeitiçava. Não os via, apenas ouvia aquele som cavo e poderoso. Tentei fazer uma gravação com o telemóvel (na altura um Nokia muito elementar) mas saiu um fiasco.Talvez porque o som era muito grave.
    Vou tentar fazer uns videozinhos para ir colocando aqui e, assim, dar a conhecer a serra de um modo mais vivo.

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  3. Respostas
    1. Olá GM,
      Isto das bikes é uma cena muito radical, não é? :)

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  4. Olá João,

    É estranho saber que quando olhamos para as estrelas elas talvez já não existam...

    Tudo muito bonito, vídeo e fotografias.
    Ouvi muito bem os passaretos, mas apenas posso garantir que não é o canto do cuco ;)
    Cortinas de chuva ao longe conheço bem,só que geralmente não dá para fugir.
    Gostei da imagem do rato biker a fugir do gato chuva.
    It's very funny!

    Maria

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    1. Pois é Maria, a realidade pode ser muito estranha; e por isso fascinante.
      João

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